Consuelo está chegando!!!! Eu sinto. Encostei o ouvido no chão e senti as vibrações.
Consuelo vem consolar a dor da solidão sofrida por Dexter, o primogênito, cuja irmã resolveu viver vida de madame em Nova Iorque e nunca mais voltar à terrinha. Dexter perdeu a cabeça desde que chegou aos trópicos. Sentindo-se solitário, tornou-se sociopata. O calor amoleceu os miolos. Após traumática experiência de ver seus pais se divorciarem, mudar de país 2 vezes em 2 meses, pegando carona, enquanto drogado, em 4 aviões, diversos táxis, uma kombi e uma moto de pet shop (isso deveria ser proibido), e de aventurar-se no submundo mais sujo da cidade de São Paulo respirando a mesma marola de crack de travecos e mendigos, o bichinho não agüentou. Pirou de vez. Agora, dois milênios depois, tem vida de dândi e age como tal; excêntrico. Politizou-se: faz questão de ser ouvido. Não só pelos tiranos ditadores da casa - no caso, meu namorado e eu - mas também pelos feudos vizinhos, cujos reis devem tê-lo como pária.
O Dexter realmente adora falar. MUITO ALTO. É um cara super vocal.
Pois Consuelo vem acalmar seus nervos. Eles falam a mesma língua. Por enquanto, Dexter é o único habitante neste reino que fala gatês, e imagino que isso deva trazer uma angústia muito grande, afinal de contas, comunicação é tudo em nosso mundo contemporâneo. Consuelo será intérprete providencial. Ela fala gatês, inglês, alemão e, claro, espanhol. E goianês, por suas raízes. Cá entre nós, ela vem de Anápolis, mas não espalhem. Ela prefere que digam que vem de Andaluzia. Une Chat Andalou.
Ah, tô revoltada. Tem uns cartazes pela cidade divulgando uma passeata pró-vida que vai rolar aqui em Brasília. A frase de efeito deles é "Se queremos a vida, porque legalizar a morte", ou algo do tipo. Aquela coisa bem apelativa pra atingir a sementinha plantada no subconsciente de todos pela doutrinação e superstição subliminares cristãs existentes nesta metade aqui do planeta. Aquela sementinha bem difícil de remover, não importando o quanto se tente.
Toda vez que eu vejo o diabo do cartaz eu me arrependo de ter esquecido o canetão em casa.
Me revolta o fato da sociedade apoiar que o estado deve ter controle sobre o que as mulheres fazem com o próprio corpo. O MEU corpo. EU mando, não aquela corja engravatada que nem sabe quem eu sou.
A maioria das pessoas no Brasil é contra o aborto. Será que elas se questionam sobre o por quê? Será que essa opinião foi concebida de forma autônoma, ou será que é tida como dogma? Ou será que o assunto tá tão longe da realidade da maioria das pessoas que elas nunca param pra pensar sobre as questões envolvidas? Dizem que o que os olhos não vêem o coração não sente. Pois no Brasil as mulheres nunca tiveram acesso à liberdade que é poder escolher continuar ou interromper uma gravidez indesejada. Então elas não sabem como seria ter tal acesso, e conformam-se com a presente situação. Isso é tão típico do universo humano. Conformismo. Aquela coisa não-tá-perfeito-assim-mas-tá-bom-então-deixa.
Existe um estigma da mulher que emprenha sem querer. Ela dá horrores, bêbada, sem camisinha e puft, se fodeu. Bem feito, quem mandou?
Quem mandou nascer com útero numa sociedade que julga usando como base moldes injustos e machistas? Uma sociedade onde se você for homem e virar as costas para uma gravidez de sua responsabilidade, você pode simplesmente continuar sua vida como se nada tivesse acontecido; se você for mulher e quiser fazer a mesma coisa você é julgada, estigmatizada, corre risco de vida e ainda pode ser presa.
O estado por acaso dá às mulheres condições de criar filho aqui neste país? Mesmo dentro da classe média é difícil. Finalmente, depois de muito bafafá desnecessário, passaram a lei da extensão da licença maternidade. Mas como nada é simples por aqui, peraí, não é bem assim. Tenho uma amiga amada cujo novo bichinho faz 1 mês nesta semana. Ela terá apenas 4 meses de licença porque é uma burocracia dos infernos conseguir o diabo da extensão. A cidade tem que implementar a lei primeiro, e pasmem, Brasília ainda não o fez. Se uma empresa muito legal estiver a fim de contemplar suas funcionárias com os dois meses a mais antes da implementação, terá que tirar do próprio bolso e aguardar futuro reembolso do governo. Depois de trezentos quilos de papelada e mais uns 300 anos, imagino.
Fora isso ainda trabalhamos demais por dinheiro de menos - especialmente por sermos mulheres. Ainda ganhamos menos, e muitas vezes somos as únicas provedoras. Tanto pai picareta que cai fora por aí. Aí somos obrigadas a matricular nossos filhos em sofríveis escolas públicas porque o mesmo governo que não nos dá o direito de viver dignamente e nem de escolher se queremos mesmo criar filho igualmente indignamente não supre a população com a coisa mais básica do universo, que é educação. E o bichinho ainda vai crescer (cheio de traumas gerados por criação vinda de mãe despreparada) e vai ser obrigado a se matar pra competir com mais um zilhão de candidatos pra entrar naquela bosta que é a UnB ou qualquer outra ainda pior. Isso falando da classe média. Não tenho cacife pra falar sobre a infelicidade que deve ser criar um filho em situação de pobreza. Não ouso nem tentar imaginar.
Aqui um mapa das legislações de aborto no mundo. Engraçado como em países desenvolvidos o aborto é legalizado sem restrições, e as legislações vão apertando até sumir à medida em que entramos nos países mais pobres. Será que existe alguma relação entre o bem-estar socioeconômico de uma população e controle de natalidade do mesmo?
Eu penso que no nosso país o problema é de ordem religiosa. O povo é contra porque teme a deus. Aborto é assassinato no imaginário popular; existe um conceito místico que defende que zigoto é gente.
Não ter direito a acesso a aborto seguro fode com a vida de milhares de mulheres. Os números são horripilantes: dêem uma olhada. É hipocrisia manter o aborto ilegal. As mulheres o fazem de qualquer jeito, estando dentro da lei ou não. O problema é que fazê-lo fora de lei implica risco de saúde e de vida à mulher. Contradição no sloganzinho "Se queremos a vida porque legalizar a morte". A morte e a dor já estão legalizadas, com apoio da comunidade e tudo mais.
Tá tendo agora em nosso país debate - e tomadas de decisão favoráveis, espero - sobre se mulher gestando bebê anencéfalo tem o direito de abortar. Ora, o bebê anencéfalo morre. Pode até viver poucos dias, se é que se pode chamar aquilo de viver, e logo morre. Não tem jeito. E a mulher que carrega um bichinho infeliz desses, hoje em nosso país, é obrigada a levar a gravidez até o fim, parir, e assistir o bichinho sofrer uns dias e morrer. Super humano.
Eu acabei de ver este trailer, do filme "O Aborto dos Outros", recém parido por uma tal de Carla Gallo:
Agradeço à Sra. Gallo pela coragem e iniciativa. Mal posso esperar pra ver o filme e o impacto do mesmo em nossa comunidade. Tomara que gere muito debate.
É ótimo que o assunto, há tempos dormente, esteja em pauta neste momento em nosso país. Mas vou ser bem sincera com vocês: duvido que desta vez o negócio mude. As pessoas ainda não digerem a questão de forma aberta, sem intervenções dos antigos tabus enraizados na nossa cultura. Se houvesse referendo hoje, não passa. Mas o assunto estar presente já é um começo. Quem sabe isso faça com que as pessoas pensem por si.