22 julho 2010

Branquinha, AL


08 de julho 2010


A entrada para a cidade estava bastante movimentada. Havia carros, aparentes civis, bombeiros, soldados e tendas do exército e da Médicos sem Fronteiras. À nossa esquerda, um posto de gasolina que, em vez das habituais lojinhas, hospedava a Prefeitura e as Secretarias de Saúde e da Educação, sinalizados com faixas. 

O bombeiro nos orientou a buscar trabalho na Secretaria da Educação. A Teresa nos deu uns papéis com dados de um levantamento feito lá, no município de Branquinha, AL. Nossa tarefa era fazer uma contagem da informação contida nos formulários, e transferi-la para um outro formulário. Número total de pessoas na família abrigada, número de crianças de tal idade, idosos, pessoas com tosse, dores, diarréia, etc. Havia fornecimento de água? E eletricidade? E colchões? Ninguém tinha colchão.

Terminamos rápido. Teresa nos olha, ajeita os óculos no nariz e pergunta: Já foram "lá embaixo"? Não. Ainda não. Ela se embola com papéis, lápis, abre umas gavetas, profere frases incompletas, e finalmente produz as cartilhas, de título "SAIBA COMO AGIR EM CASO DE ENCHENTES | ABRIGOS" e ilustrações de péssima qualidade. Nosso trabalho agora era ir a um abrigo, agregar pessoas e ler a cartilha a elas. "Porque elas não sabem ler."


Descemos ladeira rua abaixo, o asfalto coberto de lama seca raspada. Alguém havia comentado que tinham lavado a rua com cloro naquele mesmo dia, pela manhã. As casinhas eram simples, enfileiradas à beira da rua, uniformes com suas parabólicas no telhado e caixas d'água à porta. Na medida em que fomos descendo, o cenário foi mudando. Agora, víamos pilhas de lama misturada com escombros e lixo. Casas cujas portas ausentes exibiam seus interiores destroçados. Entulho e coisas inidentificáveis nos telhados.








O município ficava em um vale, ao lado de um rio. O rio transbordou e destruiu tudo a seu alcance. Passamos por um dos poucos sobrados, que tinha ao meio da parede do segundo andar uma linha demarcando onde a água estivera; branca para cima, bege para baixo. A linha sobrepassava por cerca de metro a altura total das casas comuns.




Fomos caminhando e logo vimos um aglomerado de pessoas e sombrinhas em frente. Uma mulher carregando um colchão. O aglomerado era uma longa fila. Perguntei de quê, e a moça respondeu que era para pegar colchão. Olhei o chão, e tinha um cachorro que aparentava estar muito doente. Ele gania e ofegava brutalmente, a barriga em espasmos. Fui caminhando em direção à Paula e tapei a boca, chorando. "Não vai chorar aqui não, bicha. Não vai chorar na frente desse povo aqui. A tragédia não é sua.". Ela tinha razão. Engoli e fomos seguindo.








O cenário agora, aqui no centrinho do município, era de completa devastação. Um trilho de trem retorcido no meio de uma vala. Tijolos e restos de construção espalhados, prédios desmoronados, lama, muita lama. Adultos que não estavam na fila estavam sentados, ociosos. Crianças corriam para lá e para cá, e brincavam no meio dos escombros. A menina me chamou, Moça, tira foto? O nome dela era Rosinha. Tirei umas fotos e continuei caminhando, seguindo meus amigos. Vi uns meninos em cima de umas vigas de aço que identifiquei como restos do trilho. Eles abanavam a mão e se exibiam para a câmera.





Caminhamos à procura do abrigo, pedindo direções no caminho. Algumas mulheres lavavam roupa no rio, ora assassino, hoje manso. Uma mulher estendia roupa. Havia uma estátua de santo - que não percebi na hora, mas sobre a qual depois Paula comentou. Vasculhando minha memória, me lembrei de um objeto branco próximo à mulher. Estava prestando mais atenção à mulher, que nos deu direções. Paula disse que o santo parecia ter sido restaurado.


A escola abrigava 37 famílias em suas salas de aula. Dentro de cada, um amontoado de objetos aleatórios, panos, cadeiras, e até uma televisão. Uma mulher nos aconselhou a fazer a leitura das cartilhas dentro das salas. Não quis. Achei invasivo. Aquelas pessoas já não tinham privacidade alguma, e tive vários receios. Tive receio delas me verem com a câmera na mão e achar que estaria lá explorando a imagem delas. Tive receio delas me verem e pensarem Quem é essa menina que vem de outro mundo e pensa que pode se sentir tão à vontade no que resta do meu? ou O que essa menina pensa que pode nos ensinar?


A Paula agregou uma molecada e começou. Fantástica. Crianças pipocavam de todos os cantos, e formavam uma pequena multidão em volta dela. Dois caras de uma rede de TV a filmavam enquanto ela fazia brincadeiras, ensinando os pequenos sobre lixo e leptospirose e higiene. Adultos, eu incluída, observavam, entretidos, aquele pequeno aglomerado de risadas. Um sopro de leveza meio à nuvem de desespero enrustido que pairava sobre os adultos.




Abordei adultos, convidando-os à leitura. Os olhos de uma mulher loira, acompanhado de marido carregando bebê, tinham algo dentro que dá vontade de chorar só de lembrar. Não sei descrever. Era uma tristeza que eu não conheço, algo sem esperança, enorme, úmido, escuro. 


Conversei com um rapaz com um bebê minúsculo no colo. 19 dias. O bebê veio junto com a enchente.


Consegui juntar um pequeno grupo de adultos, todas mulheres, com exceção de um senhor. Tentei ler a cartilha, mas seu conteúdo não se aplicava ao que essas pessoas estavam vivendo. A cartilha acabou sendo quase completamente ignorada, substituída por conversa e desabafo. Três mulheres falavam mais, e logo o grupo foi minguando. Algumas pessoas vinham e iam. Não perguntei os nomes das mulheres. A câmera estava guardada.


Não tenho cacife para explicar os problemas dessas pessoas por uma série de motivos: primeiro, não estou na pele delas para começar a compreender o que é perder pessoas, casa e objetos pessoais, e depois morar em um abrigo precário e provisório, sem saber para onde ir amanhã. Também não passei tempo o bastante com essas pessoas para vivenciar seu dia-a-dia. E não tenho treinamento algum em assistência social. 


Não me sinto no direito de definir seus problemas. No entanto, posso relatar algumas coisas que me foram ditas. Também, alguns sentimentos meus.


Nos banheiros da escola/abrigo, as pessoas estão fazendo suas necessidade no chão. As mulheres me disseram que colocaram um tamanco à porta do banheiro para pisar o chão com o pé elevado. No banheiro dos homens, o vaso estava tão entupido que alguns homens estavam fazendo suas necessidades em um saco plástico e depois jogando o mesmo dentro do vaso, piorando o entupimento. As crianças estavam sentando nos vasos sujos. A filha de dez anos da mulher de vermelho, a mais comunicativa, estava com prurido na região genital. A mulher ainda não havia procurado ajuda médica.


A cartilha diz: "O banheiro deve estar sempre higienizado e organizado, com papel higiênico, lixeira, sabonete e álcool 70%. A retirada do lixo, limpeza do local, reposição de papel higiênico, sabonete e álcool 70% devem ocorrer, no máximo, a cada três horas.". No abrigo que visitamos, as mulheres me disseram que poucos dias antes, finalmente, a prefeitura começara a fornecer funcionários para fazer a limpeza dos banheiros. Duas vezes por dia.


Tentei pensar em alguma solução. Não consegui. A Paula sugeriu que eles colocassem um fiscal à porta dos banheiros. As mulheres disseram que isso poderia piorar os conflitos internos que as família abrigadas já têm. Isso abriu todo um novo mundo de problemas os quais nós, leigos forasteiros, nem poderíamos imaginar. A dificuldade de, depois de toda a desgraça acontecida, ser obrigado a compartilhar sua privacidade com outros, em espaço precário. Sem contar os conflitos já existentes antes da enchente. Toda comunidade tem os seus.


Havia duas igrejas na cidade. Uma desmoronou, a outra, não. Os freqüentadores desta se gabavam por sua igreja ter resistido à enchente, enquanto a outra ruira. Porque Deus quis. Porque a outra não era boa.


Os donativos, antes distribuídos generosamente, agora eram somente fornecidos através de uma certa papelada. Aquela fila enorme e lenta dos colchões. Tinha gente que não havia sofrido perda de bens, mas estava se aproveitando da situação para receber os donativos.


De vez em quando, eu lia um pedaço da cartilha para guiar assuntos. A cartilha abordava Recuperação Emocional, Cuidados com o Ambiente e a Higiene Pessoal em Abrigos, Manipulação de Alimentos numa Cozinha de Abrigos, Prevenção de Doenças Infecciosas Respiratórias, e Cuidados ao Voltar para Casa, em dez páginas, com grandes ilustrações mal feitas. A cartilha aparentava ter sido produzida por pessoas alheias à realidade dos abrigos. 


Um trecho da seção Recuperação Emocional (duas páginas, poucos caracteres) diz "Use preservativos nas relações sexuais". A mulherada gargalhou. "Não tem nem clima pra isso!", diziam. E aí a mulher de vermelho me disse que seu marido estava no interior de São Paulo, trabalhando em uma usina de cana de açúcar. Ele normalmente ficava lá durante 12 meses, para passar o 13º em Branquinha, com a família. A outra mulher me disse que 70% dos homens de Branquinha trabalhavam assim. Olhei em volta, refleti sobre as pessoas que tinha visto até então, e percebi. Exceto por uma meia dúzia, todos os homens que eu tinha visto eram senhores ou meninos. O município é das mulheres. Homens ausentes, mulheres com filho no colo enfrentando esse desastre de ordem natural e social.


A mulher de vermelho disse que "já tinha acontecido umas três vezes antes, mas esta foi a pior". Ela descreveu como, em vinte minutos, a casa dela encheu de água a ponto dela catar os filhos e subir no telhado. Imaginei uma tromba d'água. Ela também disse que "naquelas barracas, nem cachorro consegue ficar". Estava se referindo às famosas barracas inglesas que estavam montando em uma área mais alta do município. As mulheres disseram que as barracas absorviam o calor, chegando a temperaturas insuportáveis. Dentro de uma semana, as aulas precisariam ser retomadas na escola/abrigo, e todas as famílias seriam relocadas para o acampamento. A mulher de vermelho temia por sua segurança e a dos filhos lá. As mulheres desconheciam plano do governo para um próximo passo, depois das barracas.


Um certo alvoroço na entrada no abrigo. Estavam distribuindo panelas. Sem dizer, as mulheres mostraram vontade de ir, mas, cordialmente, não se levantaram. Hora de nos despedirmos, com alusões a um Deus o qual não acredito. 


Queria voltar. Meus amigos, não.


No dia seguinte, retomamos o trabalho no corpo de bombeiros. Tinha muito trabalho a ser feito. 

3 comentários:

Kau disse...

Eu não sei nem o que comentar sobre esse texto. Não sei o que comentar, não saberia o que fazer, não saberia o que dizer a ninguém se eu estivesse lá, nem a mim (fiquei tentando imaginar se estivesse). Teria vergonha do meu despreparo de vida. Talvez conhecendo a realidade mais de perto, mas pra mim, tudo isso é tão distante que se não pelas fotos não conseguiria nem imaginar as cenas descritas. Vale a reflexão, pelo menos.
bjs.

Dandalunda disse...

NOSSA, CAROL, TO MUITO IMPRESSIONADA.
QUE SITUAÇÃO. O JORNAL RESUME TUDO TÃO RÁPIDO PRA TODO MUNDO, A GENTE NUM TEM NOÇÃO DO QUE ACONTECE NA REALIDADE, ESSES PORMENORES QUE PUDE LER NO SEU BLOG.

CARACA. TO CHOCADA. VOU LER O RESTO.
BEIJO.

Paulinha disse...

que barra, hein bicha?

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